Informações do Post - - Enium Criação de Sites - - 15 de outubro de 2014 | - 11:57 - - Home » - - Sem Comentários

ARTIGO: História e emprego profissional da mulher policial-militar

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Qualquer novidade torna-se uma estrutura ambígua: por vezes desejada, querida, exigida, por outras repelidas, temida, odiada. A novidade é um paradoxo interessante também por, ainda que viva esta ambigüidade, tornar-se necessária a própria evolução.

À cultura, a novidade surge como temor, pois ela tende a desequilibrá-la; a retirar a suposta paz existente naquele meio social, naquela forma de atuar frente ao mundo.
Assim podemos iniciar um estudo sobre o ingresso da mulher na Polícia Militar da Bahia (PMBA), ao saber que após 165 anos de convívio exclusivamente masculino, a Corporação recebe a determinação do Governo do Estado de inserir em seu quadro mulheres para atuar como policiais militares, a penúltima Polícia Militar do país a abrir suas portas a este segmento.
O jornalista Gastão Faria, citado no texto de Moreira (1998), quando escreveu sobre o ingresso das mulheres nas corporações militares, indicou que:  Vá que a mulher triunfe em matéria de direitos políticos, vá que ela chegue a ser deputado, senador, cabo eleitoral. Nunca cabo das fileiras marciais (…). O sexo forte não suportaria tamanha afronta aos seus brios… Não. (…) não” (…) No dia em que ela, como soldado, formar ao lado do homem, nesse dia então o mundo não terá mais poesia. Tudo desmoronará: ambição, sonho de glória, vertigem das alturas, tudo desabará ao choque violento do desânimo. O homem não será mais o homem. (GASTÃO FARIA APUD MOREIRA, 1998).
Ainda que escrito no início do século passado, o Jornalista recria uma situação atual. O ingresso feminino na PMBA se dá por uma imposição externa, não por um estudo ou desejo da Corporação, os homens que ali estavam iniciam um processo de planejamento deste ingresso, e, talvez, neste momento iniciam-se também nossos maiores problemas. São os homens com suas impressões culturais e seu adestramento militar, voltado a uma experiência sem mulheres em seus quadros, que vão decidir e planejar a “vida” da mulher PM.
É possível que isto tenha auxiliado no processo de identificação da mulher na corporação. É possível que ao atrelar a suas perspectivas de desempenho às representações que culturalmente entendem como femininas, tenham prejudicado a mulher na PMBA a encontrar “seu lugar”.

Para Campos e Rouquette (2003), representações sociais atuam como um sistema que interpreta as relações dos indivíduos com seu meio social, um guia dos comportamentos e das práticas sociais, em paralelo com a realidade da sociedade em que esta está inserida, atua também como uma função justificadora, ou seja, a representação social tem por função preservar e justificar a diferencia social, e ela pode estereotipar as relações entre os grupos, contribuindo para a discriminação ou para a manutenção da distância social entre eles.

Assim, invariavelmente, uma Corporação policial militar que se compõe de pessoas que tem origem e destino na sociedade será formada e construída através das marcas culturais que permeiam aquele coletivo.
Considerando que as representações sociais tendem a vir atreladas a um processo discriminatório, nesse caso, a discriminação de gênero, esta pesquisa tem o interesse de estudar a formação desta representação na PMBA nos 21 (vinte e um) anos das mulheres em suas fileiras, e as discriminações de gênero decorrentes desta trajetória, inclusive, e em especial, àquelas que este segmento vivencia de forma perceptível ou não.
Como componente das primeiras turmas de Sargento e Oficial da PMBA sempre me inquietou a forma como éramos/somos tratadas. Ora como bibelôs ou as “meninas” do quartel; ora como as incapazes profissionalmente para o serviço operacional, logo precisávamos ser protegidas por todos os colegas em qualquer situação. E, talvez a minha maior inquietude é de saber que muitas de nós absorvem esse lugar (frágil) e passam a acreditar-se como tal.
Como ponto de partida uma experiência singular por sua sutileza: como dito, o processo de planejamento do ingresso feminino na corporação, já que obviamente não havia mulheres em seu quadro, foi feito por homens. O uniforme, os códigos de conduta, a estrutura física de abrigo da Unidade e a atividade fim foram idealizadas e revistas por oficiais masculinos. A escolha do código fonético para identificação das comunicações via rádio para a Companhia de Polícia Militar Feminina (Cia P Fem) também foi assim. O código “Atena” foi escolhido com o argumento de tratar-se da deusa grega da sabedoria, do ofício, da inteligência e da guerra justa, logo uma imagem forte, guerreira e audaciosa que em muito se assemelhava a proposta midiática da inserção feminina nesta carreira. A companhia tornou-se a Base Atena, as policiais, conhecidas em meio aos demais, de forma coincidente ou não, como mulheres da base de Atena, as “Mulheres de Atenas”.
Atenas é uma cidade grega conhecida na história por ter em seus habitantes homens fortes e guerreiros, um dos mais importantes exércitos da Grécia antiga e pela negação de suas mulheres. As mulheres gregas em geral eram despossuídas de direitos políticos ou jurídicos e encontravam-se inteiramente submetidas socialmente (Gomez, 2000). A ateniense casada vivia a maior parte do tempo confinada às paredes de sua casa, detendo no máximo o papel de organizadora das funções domésticas, estando de fato submissa a um regime de quase reclusão. Chico Buarque de Holanda e Augusto Boal, na música “Mulheres de Atenas” (1976) poetizam que estas mulheres “elas não tem gosto ou vontade, nem defeito, nem qualidade, tem medo apenas”.
Considerando a possibilidade de coincidência, também se torna possível não ignorá-la: ao atrelar àquelas profissionais um simples código fonético é possível que tenha potencializado uma idéia (representação social) contida no pensamento e opinião daqueles homens que as formaram.
A fragilidade, sensibilidade, resignação feminina, representada socialmente através da escrita masculina da história do mundo, constituíram-se em estratégias usadas em corporações militares possivelmente como uma ferramenta de recalque das mulheres. A força física era idolatrada e tida como impossível às mulheres; a suposta idéia de sensibilidade e a racionalidade as empurravam dia a dia a serviços de somenas importância e de pouca visibilidade. A idéia de que o emprego ostensivo da mulher era arriscado aos seus parceiros era o discurso preferido indicado nos corredores e, por vezes, introjetado nas mulheres.

De acordo com Shaffer (2005, pg 212), a adolescência pode ser entendida biologicamente como um estouro hormonal que forma o corpo adulto, é o que diferencia a forma física do homem e da mulher, antes só possível com a verificação dos órgãos sexuais externos. É nesta fase do desenvolvimento humano que a mulher arredonda suas formas e o homem enrijece seus músculos, fruto de uma adaptação biologicamente cultural da espécie humana. Indica ainda este autor que esta talvez seja a diferença central entre a força, dita masculina, e a fragilidade atrelada ao feminino, já que é nesta fase que os hormônios formulam a possibilidade de formação de músculos nos homens e desenvolvem características exclusivas da mulher (seios, menarca etc).

Mas não é no corpo que se fundamenta esta diferenciação, pois ainda que a mulher tenha características físicas diversas do homem, esta mantém em si a possibilidade – tal qual o homem – de desempenhar quaisquer atividades assim que treinadas, assim como ao homem é possível o aprender dos trabalhos domésticos. Como indica Simone de Beauvoir:
Os dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são um elemento essencial de sua situação. (…) Pois sendo o corpo o instrumento de nosso domínio do mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra (…) são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos, é a idéia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia entre os sexos; não explicam porque a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada. (BEAUVOIR, 1980, 52)
Logo, não é na biologia que esta discussão se encerra, o que a consolida são as impressões culturais que a circunda, são as representações sociais que a justificam.
Representação Social é uma maneira em que nós, sujeitos sociais, aprendemos os conhecimentos da vida diária, as características de nosso meio ambiente, as informações que nele circulam, as pessoas de nosso relacionamento.  Este conhecimento se constitui a partir de nossas experiências, de nossas informações, conhecimentos e modelos de pensamentos que recebemos e transmitimos através da tradição, da educação e da comunicação social. Desse modo o conhecimento é, em muitos aspectos, um conhecimento socialmente elaborado e compartilhado: uma representação de nossa sociedade (SÁ, 1993)
Se o meio sócio-cultural insere na mulher a fragilidade e as atribuições do cuidar doméstico, é possível entender que a representação social deste gênero estará também atrelada a estas impressões; são as experiências que vivemos que vão indicar a idéia que temos de algo. Em nossa cultura a mulher aparece como a cuidadora, a responsável pela criação dos filhos, a sensível, o sexo frágil.
Historicamente a suposta inferioridade feminina encontra suas raízes exatamente nessa diferença sexual estendendo a todo seu ser e em especial a suas faculdades intelectuais, como indica Soihet (1997, p.9) ao citar que para as mulheres a inferioridade da razão era um fato incontestável, e que a estas bastava o entendimento necessário a execução de seus deveres naturais (como obedecer ao marido, ser-lhe fiel, cuidar dos filhos), sendo estas incapazes de ultrapassar o mundo da domesticidade que a natureza lhes concedeu como legado.
De acordo com Moscovici citado por Sá (1995), ao se representar alguma coisa não se sabe se o que é mobilizado é um índice do real ou um índice convencional, social ou afetivamente significante; para que entendamos melhor esta idéia do objeto é importante que comecemos do começo, ou seja, que analisemos a formação cultural e os critérios sociais existentes naquela sociedade para assim entendermos porque criamos esta representação.  Para tanto, definir a submissão imposta às mulheres como violência simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, entendida como uma relação histórica, cultural e linguisticamente construída é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal. Este discurso trouxe efeitos devastadores à história, e não poderiam deixar de forjar a idéia do feminino hoje existente (SOIHET, 1997, 11).
Esta tendência de acolhimento no mercado de trabalho das mulheres de extensão do espaço doméstico foi mantida na PMBA já no Decreto de criação da Cia P Fem – marco do ingresso feminino na corporação – que indica a prática profissional dessas mulheres, dando “ênfase à proteção de crianças, mulheres e idosos (…) suplementando ou complementando a atuação de policiais militares masculinos” (DOE 19 de outubro de 1989, DEC Nº 2905).
Um fato emerge: as policiais militares, ainda que integradas e com cargos técnicos (denominação militar) iguais ao masculino, não atuam como estes em sua plenitude, não são inseridas em atividades e ações policiais, por vezes, ainda que de forma velado, por serem mulheres.
Uma prática cruel ao se pensar em autonomia profissional que infelizmente também aparenta estar legitimada em algumas mulheres ao preferir estarem na condição “doméstica” da corporação que sinaliza mais de 80% do efetivo feminino[3] em atividade administrativa. Salienta-se também o processo seletivo para ingresso na Corporação que reserva apenas 10% de suas vagas ao público feminino[4], sem que exista um embasamento legal que indique isto. Um conclame à reflexão. Uma possibilidade de análise. Uma angustia profissional. Uma vontade de fazer o diferente. É assim que se consubstancia esta inquietude acadêmica despertada através dos estudos da disciplina Administração de Recursos (humanos e materiais), ao podermos vislumbrar a proposta do instituir a discussão sobre o lugar da mulher na corporação e de como esta (a PMBA) não se preparou para seu ingresso e permanência.
Em um curso como de Especialização em Segurança Pública, que tem como missão preparar os futuros comandantes de unidades operacionais da corporação torna-se imprescindível prepará-los também para lidar com esta especificidade do feminino na corporação, fazendo-os pensar na mulher não como no ambiente civil (sua mãe, irmã, companheira), sim como profissional e, em assim o sendo, com os deveres técnicos idênticos aos dos homens.
É este Comandante que deverá inserir esta mulher em todas as atividades, em especial a operacional, retirando aqui a estatística existente de que a mulher policial militar só atua no administrativo.
É hora de refazer e fazer história. De reconstruir a trajetória feminina, mas, passando intrinsecamente pela trajetória do masculino no lidar com este segmento. Igualdade para todos como prevê a nossa Constituição, mas igualdade não pode nunca ser pensada como privilégios de gênero. Assim como o homem policial militar a mulher faz o juramento, e, em assim o sendo, sua missão é única: servir a sociedade.

[2] Códigos fonéticos são códigos criados para dar celeridade nas comunicações via rádio e são escolhidos como uma forma de melhor identificação da origem das mensagens, remetendo-o a uma palavra que represente seja significativa à região ou atividade desempenhada pela Unidade Operacional da PMBA, nomes que indicam e que representam às especificidades de cada organização Trabalho Apresentado no CESP 2013.
[3] Fonte: Departamento de Pessoal da PMBA, dados em 2011.
[4] Idem
REFERÊNCIAS
SHAFFER, David R. Psicologia do Desenvolvimento: infância e adolescencia. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. 221p
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigação em psicologia social. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003

Autora: ** Denice Santiago Santos do Rosario é Capitã da Polícia Militar da Bahia e Psicóloga.

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